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A crise das Marcas e a dificuldade em se batizar Produtos

por Deborah Portilho
Jornal Valor Econômico, Cad. Legislação e Tributos-Rio, Segunda-feira, 9 de novembro de 2009, p. E2

Não se pode mais ignorar a existência de uma crise de marcas, responsável pela dificuldade que as empresas no mundo todo vêm encontrando para criar novas marcas. No Brasil, a situação é particularmente preocupante, uma vez que, diferentemente de outros países, como os Estados Unidos, o uso da marca não é condição para a obtenção, nem para a prorrogação de um registro. Essa característica do sistema brasileiro contribui significativamente para o aumento da dificuldade de se “batizar” um novo produto ou serviço. De qualquer forma, uma solução para o problema pode estar muito mais perto do que se imagina e algumas empresas já se deram conta disso.

Para se ter uma ideia, para que uma empresa registre uma marca nos EUA, ela deve declarar, no ato do depósito, ou a data do primeiro uso, ou a sua “intenção de uso”. Neste último caso, a empresa deve posteriormente apresentar uma declaração de uso, sem a qual o registro não será concedido pelo “United States Patent and Trademark Office” (USPTO). Da mesma forma, para que um registro possa ser prorrogado, a empresa deve apresentar uma declaração de que a marca continua em uso, ou justificar o desuso.

No Brasil também existem requisitos para o registro de marcas. De acordo com o artigo 128, parágrafo 1º, da Lei da Propriedade Industrial ( Lei nº 9.279, de 1996), “as pessoas de direito privado só podem requerer registro de marca relativo à atividade que exerçam efetiva e licitamente, (…) direta ou indiretamente, declarando, no próprio requerimento, esta condição, sob as penas da lei.”

Entretanto, apesar dessa exigência, na prática, é suficiente que a empresa esteja efetivamente engajada nas atividades de interesse, mas não necessariamente exercendo tais atividades. Tanto é assim que, caso o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) faça uma exigência com relação à atividade declarada pela empresa, ela deve apresentar cópia do contrato social ou de seus atos constitutivos, a fim de demonstrar apenas que as atividades declaradas no requerimento constavam do objeto social da empresa, à época do depósito.

Em termos práticos, isso significa que as empresas podem requerer registro para todos os produtos e/ou serviços que constem de seu objeto social, independentemente de estarem ou não exercendo efetivamente as atividades relativas a tais produtos ou serviços à época do depósito.

O problema é que, em muitos casos, as atividades previstas no objeto social são muito mais amplas do que as efetivamente exercidas. Assim, algumas empresas acabam reivindicando proteção em uma determinada classe para mais produtos ou serviços do que o efetivamente utilizado, bem como depositando marcas em mais classes do que o necessário.

Seja como for, a consequência para tal prática no Brasil é a caducidade do registro com relação aos produtos ou serviços cujo uso não tiver sido comprovado. Já nos Estados Unidos, o registro que acoberta, em uma determinada classe, mais produtos ou serviços do que aqueles que a empresa utiliza pode ser totalmente cancelado por fraude. Isso significa que o titular perde o direito à proteção da marca, inclusive com relação aos produtos ou serviços em que ela era efetivamente usada.

Em vista dessa sanção rigorosa, a lógica é que nos EUA as empresas apenas registrem e prorroguem as marcas de fato utilizadas. Partindo dessa premissa, pode-se concluir que a base de dados do USPTO só contém marcas que estão efetivamente em uso no país. Por seu turno, a base de dados do INPI contém, além das marcas que estão realmente sendo usadas no Brasil, marcas que nunca foram usadas e que talvez nunca venham a ser.

Isso não seria um problema se essas marcas não utilizadas não constituíssem obstáculo ao registro de outras. Apesar de o problema poder ser resolvido por meio de pedidos de caducidade, tendo em vista que uma decisão sobre esses processos demora de dois a quatro anos, essa solução não atenderia à maioria das empresas interessadas nas marcas.

Assim, para impedir que a situação da base de dados do INPI continue a piorar, a Lei da Propriedade Industrial deve ser atualizada, a fim de que o uso passe a ser um requisito, tanto para a obtenção do registro como para a sua prorrogação. Ademais, é importante que o INPI volte a ter a possibilidade de instaurar processos de caducidade ex-officio – como previsto no antigo Código da Propriedade Industrial (Lei nº 5.772, de 1971). A partir dessas mudanças, o INPI poderá enxugar sua base de dados, diminuindo a dificuldade de criação de novas marcas e aumentando as possibilidades de registro.

Seja como for, a crise de marcas continuará a existir no Brasil, nos EUA e no resto do mundo já que o número de novos produtos e serviços no mercado só tende a crescer. O curioso é que algumas empresas já perceberam que o problema pode ser contornado com uma medida bem simples.

O que essas empresas estão fazendo é buscar marcas já registradas em seus próprios portfólios. Este é o caso do antigo Complexo B Roche que passou a ser comercializado pela Bayer quando esta comprou a unidade de consumo da Roche em 2004. Em vez de criar uma nova marca, a Bayer optou por adotar a Beneroc que já estava registrada há mais de uma década e nunca havia sido usada.

Dependendo do produto, as empresas podem adotar até marcas que já tenham sido usadas, mas que tenham potencial para serem recicladas. Dois exemplos são a TaB, da Coca-Cola, e a H2OH!, da PepsiCo. A primeira identificou no passado um refrigerante dietético e ressurgiu em 2006 como TaB Energy para um energético, enquanto que a H2OH! havia sido registrada nos EUA em 1993 e foi habilmente ” ressuscitada ” em 2006.

Como se verifica, além da necessária alteração legislativa, é importante que a prática da reciclagem de marcas seja incorporada ao processo de seleção de marcas das empresas. Esta é uma solução simples e prática e também uma importante ferramenta, não só para contornar a crescente crise mundial de marcas, mas principalmente para empregar os ativos da empresa de modo mais efetivo, eficaz e eficiente.

Deborah Portilho é advogada especializada em marcas, com particular foco na área farmacêutica, professora de direito marcário do Curso LL.M. Direito Corporativo do IBMEC/RJ e sócia-diretora da D.Portilho Consultoria e Auditoria de Marcas.

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico.

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